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DossiêNº 71

Cultura como arma de luta: o Medu Art Ensemble e a Libertação da África do Sul

Este dossiê aborda o Medu Art Ensemble (1979-1985) e no seu papel na organização da resistência cultural na luta pela libertação na África do Sul e na região.

 
Medu Art Ensemble, Simpósio e Festival de Artes Cultura e Resistência, 1982. A liderança do partido Congresso Nacional Africano, Lindiwe Mabuza, fala no Simpósio e Festival de Artes Cultura e Resistência na Universidade de Botsuana em Gaborone, Botsuana, 1982. Medu Art Ensemble, Jonas Gwanhwa & Shakawe con Dennis Mpale, cerca de 1983. Créditos: Medu Art Ensemble e Anna Erlandsson via Freedom Park

As imagens deste dossiê são da coleção Medu Art Ensemble, de Freedom Park, que contém 150 materiais digitalizados, atualmente localizados na página da internet da Biblioteca da Universidade da Califórnia em Los Angeles.

Atuação de bailarinos durante o Simpósio e Festival de Artes Cultura e Resistência na Universidade de Botsuana em Gaborone, Botsuana, 1982.
Créditos: Anna Erlandsson via Freedom Park

Medu Art Ensemble, Shades of Change [Matizes da mudança], 1982. Peça de teatro com dois personagens que se passa em uma cela de prisão foi escrita por Mongane Wally Serote.
Crédito: Medu Art Ensemble via Freedom Park

Acima

De todas as terras

Uma dança de protesto. “Hai! Hai!”, canta a multidão, com os joelhos erguidos, os pés batendo e os dedos apontando para um inimigo invisível, porém conhecido. Com raízes nos exercícios militares do movimento de libertação da Argélia, o toyi-toyi, uma forma de cultura de resistência que mistura cantos de pergunta e resposta com passos enérgicos, percorreu os espaços de formação na Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue na década de 1960. Essa dança de protesto chegou aos destacamentos avançados de exilados do uMkhonto we Sizwe (“Lança da Nação”, também conhecido como MK), o braço armado do Congresso Nacional Africano (CNA), antes de retornar clandestinamente e ser popularizada nas cidades e fábricas da África do Sul (Gilbert, 2007). Quase trinta anos após a queda do regime do apartheid na África do Sul, o toyi-toyi evoluiu de acordo com as condições, as culturas e os objetivos políticos daqueles que o adotaram. Ele é visto em quase todos os protestos no país, desde os do movimento de luta por moradia Abahlali baseMjondolo até o Sindicato Nacional dos Metalúrgicos da África do Sul (Numsa) e dos movimentos de mineiros em Marikana até os dos estudantes do movimento Fees Must Fall.

Uma canção. A multidão vibra quando o lendário músico sul-africano Jonas Gwangwa apresenta sua música, Batsumi, para milhares de fãs que participam do maior festival anual de jazz de Joanesburgo. Estávamos em 2006. A música, no entanto, havia sido escrita 30 anos antes, no auge do regime de apartheid na África do Sul. Após tentar sua carreira musical por anos nos Estados Unidos, Gwangwa fez de Botsuana seu lar na década de 1970, absorvendo as tradições musicais locais de Setswana e, mais tarde, tornando-se um dos membros fundadores do Medu Art Ensemble em 1979, um coletivo cultural de artistas, a maioria deles exilados sul-africanos, criado e sediado em Botsuana. Batsumi, de Gwangwa, que significa “os caçadores”, homenageia a tradição de caça do Primeiro Povo de Botsuana e universaliza sua luta histórica contra a opressão como uma luta de pessoas “de todas as terras” (ba lefatshe lotlhe) (Ansell, 2019).

Um cartaz. A última edição da revista cubana Tricontinental tinha acabado de chegar em um espaço de formação longínquo em Angola. Um cartaz colocado entre suas páginas é desdobrado, com as quatro letras C-L-I-K escritas em uma fonte amarela contra um fundo azul-escuro. Mandla Langa, um escritor sul-africano exilado, membro do Medu e soldado do MK lotado ali, relembra esse momento: “lembro-me de um cartaz do qual não consigo esquecer, de quando os cubanos estavam sofrendo quedas de energia e queriam enviar mensagens por meio de cartazes aos vilarejos de todo o país sobre como economizar energia: Clique. Basta desligar” (Langa, 2020).1 Esse cartaz, feito pelo renomado artista gráfico cubano Félix Beltrán, em 1968, atravessou oceanos e continentes para chegar a esse remoto acampamento angolano alguns anos depois. Cartazes e revistas como esses foram essenciais para divulgar notícias sobre as lutas travadas em outros lugares. As pessoas corriam grandes riscos não apenas com revistas, mas com cartazes, músicas, danças e poemas para que essas armas culturais pudessem atingir o público-alvo.

Juntas, essas vinhetas são uma gota em um oceano de ricas experiências culturais na luta sul-africana contra o regime do apartheid da minoria branca e parte da tradição das lutas de libertação em todo o mundo colonizado. Quais foram as condições que exigiram e permitiram que a cultura se tornasse uma força mobilizadora tão forte, tanto em âmbito  nacional quanto internacional? O que era o Medu Art Ensemble e qual foi o papel de grupos culturais como esse para impulsionar esse momento da história? Nos últimos anos, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social conversou com vários membros do Medu e estudou alguns dos materiais, em grande parte não publicados, que o grupo produziu em seus curtos, mas impactantes anos de existência.

A história de Medu não é apenas uma história do sul da África ou da África do Sul, mas uma história internacional. Nenhuma luta de libertação pode existir sem a circulação e o intercâmbio de ideias, estratégias, recursos materiais, solidariedade política e cultura em todo o mundo. Refletindo sobre o papel da cultura nacional na luta contra o colonialismo, o revolucionário martinicano Frantz Fanon escreveu: “É no coração da consciência nacional que a consciência internacional se estabelece e prospera. E essa dupla emergência, de fato, é o foco único de toda cultura” (Fanon, 2004, p. 180).2 Em outras palavras, não existe uma cultura de libertação nacional que não esteja ligada ao internacionalismo. Durante seus seis anos de existência, de 1979 a 1985, o Medu Art Ensemble construiu e inovou com base nas práticas culturais e teorias artísticas das lutas africanas, asiáticas e latino-americanas pela libertação nacional. Thami Mnyele, um dos fundadores do Medu, nascido no bairro pobre de Alexandra, em Johanesburgo, e assassinado pelo Estado sul-africano por seu trabalho artístico e político, descreveu essa experiência:

Foi no Medu Art Ensemble que o papel dos artistas se concretizou: o papel de um artista é aprender; o papel de um artista é ensinar os outros; o papel de um artista é buscar incessantemente as formas e os meios de alcançar a liberdade. A arte não pode derrubar um governo, mas pode inspirar mudanças (…) todo o pequeno conjunto é uma oficina, uma sala de aula, uma selva por meio da qual as pessoas devem conquistar um lar […] A luta do artista deve estar enraizada na luta da maioria do nosso povo. Qualquer engajamento real na realização de mudanças deve, necessariamente, buscar inspiração e aliança com o movimento popular (Mnyele, 2009, p. 27).


Músicos tocam os tambores na inauguração do Simpósio e Festival de Artes Cultura e Resistência na Universidade da Botswana em Gaborone, Botsuana, 1982.
Créditos: Anna Erlandsson via Freedom Park

Medu Art Ensemble, The Spear Fights on Isandlwana, 1979.Credit: Medu Art Ensemble via Freedom Park

Medu Art Ensemble, The Spear Fights on Isandlwana [Lutas de lanças em Isandlwana], 1979.
Créditos: Medu Art Ensemble via Freedom Park

Acima

A cultura como arma de luta

a luta é o alimento
governo milenar dos cães de caça
dá origem à revolta
os dentes afiados da luta de classes
mastiga épocas inteiras
percorremos um longo caminho
em Soweto
éramos matadores
tanques de guerra com nariz de touro
e aprendemos
como um tijolo
pode sangrar uma bala até a morte

– Bheki Langa, “Isandlwana Incarnate”, escrito em 1979, no 100º aniversário da Batalha de Isandlwana em 1979 (Langa, 1984, p. 28).

O Medu Art Ensemble surgiu como uma necessidade de um momento histórico e de uma tradição secular de resistência cultural no continente. De acordo com Judy Seidman, integrante das unidades de gráfica e de pesquisa do Medu, as tradições que inspiraram a resistência cultural sul-africana podem ser categorizadas em quatro ondas: o início da era anticolonial, o movimento pan-africanista e, em seguida, a primeira e a segunda ondas de sul-africanos que foram para o exílio (Seidman, 2019). Seidman, que é dos Estados Unidos, passou sua juventude em Gana durante a presidência de Kwame Nkrumah, dedicou sua vida adulta ao movimento de libertação da África do Sul e ajudou a preservar grande parte da história de Medu.

A primeira tradição que inspirou a resistência cultural sul-africana consistiu em diferentes práticas culturais que responderam às invasões coloniais do século XVII ao início do século XX. Um marco importante nesse período de resistência foi a Batalha de Isandlwana, em 1879, quando os guerreiros do Reino Zulu derrotaram as tropas coloniais britânicas que tinham como objetivo expandir-se para o interior rico em diamantes e ouro. Essa fase de resistência cultural se desenvolveu com o surgimento das classes trabalhadoras sul-africanas como força social, desde os mineiros, ferroviários e portuários do século XIX até os trabalhadores fabris, domésticos e agrícolas do século XX, reunindo elementos culturais pré-coloniais e ideias dos movimentos socialistas e comunistas internacionais em ascensão.

A segunda tradição tem suas raízes no movimento pan-africanista, que começou nas duas primeiras décadas do século XX. Esse período foi moldado por líderes como o advogado de Trinidad e Tobago, Henry Sylvester Williams, mulheres acadêmicas como Anna Julia Haywood Cooper, dos Estados Unidos, e escritores sul-africanos como Sol Plaatje. Na Europa e nos Estados Unidos, Plaatje se relacionou com W.E.B. Du Bois, Langston Hughes e outros pensadores importantes. Nas décadas de 1940 e 1950, o movimento pan-africanista havia incorporado fortes tendências marxistas sob a influência de figuras importantes como Kwame Nkrumah (Gana), Sekou Touré (Guiné) e Amílcar Cabral (Guiné Bissau e Cabo Verde), que entendiam a cultura como um pilar fundamental da luta contra o colonialismo e pela unidade pan-africana. Um ano depois de assumir a presidência de uma Guiné independente, Touré fez um importante apelo aos escritores, enfatizando a relação simbiótica entre a produção cultural e os processos revolucionários que estavam em andamento: “Para participar da revolução africana, não basta escrever uma canção revolucionária; é preciso forjar a revolução com o povo. E se você fizer isso com o povo, as canções virão por si mesmas e de si mesmas” (Touré apud Fanon, 1959, p. 206).

A terceira tradição surgiu na década de 1950 com os sul-africanos que foram exilados após a consolidação do sistema político racialmente segregado que foi formalmente inaugurado com a eleição do Partido Nacional Afrikaner em 1948. Apesar da implementação de leis e restrições cada vez mais repressivas, como a Group Areas Act3 de 1950, que segregou ainda mais as áreas residenciais e comerciais, e o banimento do Partido Comunista da África do Sul de acordo com a Lei de Supressão do Comunismo, no mesmo ano, a luta pela libertação só se tornou mais engajada.4 Ele não exigia mais a inclusão na sociedade racializada existente, mas buscava reestruturar todos os aspectos da sociedade sul-africana. No auge desse momento, a histórica Carta da Liberdade foi adotada pelo Congresso do Povo de 1955 em Kliptown, nos arredores de Joanesburgo. Começando com sua proclamação inicial “o povo governará!”, a Carta abordou as necessidades materiais de terra, moradia e trabalho, bem como a libertação cultural, declarando que “as portas do aprendizado e da cultura serão abertas!” (Departamento de Educação do Governo da África do Sul, 2005, p. 12-13). Essa militância política foi recebida com maior repressão estatal, marcada pelo Massacre de Sharpeville, em 21 de março de 1960, no qual a polícia sul-africana matou 69 pessoas e feriu outras centenas.5 Quase imediatamente após o massacre, o CNA e o Congresso Pan-Africanista (CPA), um grupo cujos membros haviam se separado principalmente da Liga da Juventude do CNA, foram postos na ilegalidade e forçados à clandestinidade. Essa geração de exilados, incluindo os renomados músicos Miriam Makeba, Hugh Masekela e Jonas Gwangwa, interagiu com circuitos internacionais de artistas políticos e intelectuais, desde as Conferências de Escritores Afro-Asiáticos (nascidas da Conferência de Bandung, na Indonésia, em 1955) até os festivais culturais pan-africanos, conectando artistas negros da diáspora com os do continente.

A quarta tradição de resistência cultural veio com os estudantes e militantes sul-africanos exilados que participaram do Movimento da Consciência Negra, dirigido por Steve Biko. Esse movimento surgiu em meio ao vácuo político do final da década de 1960, que atingiu seu auge durante a Revolta de Soweto, em 1976, quando milhares de estudantes se revoltaram contra a imposição do africâner, o idioma de dominação do apartheid, como meio de instrução nas escolas negras. Em resposta, centenas de pessoas foram mortas, organizações afiliadas foram banidas e muitos dirigentes importantes foram exilados ou presos, inclusive Biko, que morreu um ano depois sob custódia policial. Ele tinha trinta anos de idade. Muitos dos estudantes e militantes politizados nesse momento acabaram deixando a África do Sul, inclusive alguns que formaram o Medu. Ao mesmo tempo, o aumento da militância no movimento sindical, como destacado pelos estivadores que dirigiram as greves de Durban em 1973, e a crescente proeminência dos sindicalistas (entre eles dirigentes como Emma Mashinini), fortaleceram a consciência de classe na comunidade artística e introduziram o conceito de “trabalhador cultural”, ressaltando a noção de que artistas e intelectuais fazem parte da classe trabalhadora (Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2023, 2019). No final da década de 1970, essas correntes políticas e culturais chegaram a Botsuana, cuja capital, Gaborone, fica a apenas 15 quilômetros da fronteira com a África do Sul e se tornou um vibrante terreno fértil para um novo projeto cultural.

“O Medu começou como uma união das diferentes energias de diferentes pessoas, às vezes de linhagens quase antagônicas”, lembra Mandla Langa sobre sua chegada a Botsuana. “Eu vim do Movimento da Consciência Negra e ainda estava tentando conhecer o terreno e o que estava acontecendo. Havia pessoas como Wally [Serote], que já estavam trabalhando para o CNA, e havia outros jovens que ainda estavam tentando se estabelecer em Botsuana” (Langa, 2020). Mongane Wally Serote, que nasceu no bairro negro pobre, mas culturalmente vibrante de Sophiatown e hoje é o Poeta Nacional Laureado da África do Sul 6, passou nove meses em confinamento solitário em 1969 sob a Lei de Terrorismo, que foi usada para reprimir muitos dos que estavam na primeira leva de exilados. Poucos meses após a chegada de Serote, Langa e outros a Botsuana, no final da década de 1970, a ideia de criar um coletivo cultural como o Medu começou a criar raízes. De fato, a palavra medu significa “raízes” no idioma Sesotho, do sul da África.

Além de reunir várias tendências e tradições, os militantes e artistas sul-africanos exilados em Botsuana foram expostos a um mundo muito mais amplo de lutas de libertação de todo o continente e do mundo. “Todo o sul da África estava envolvido na luta pela libertação – Angola, Zimbábue, Moçambique, Namíbia e assim por diante”, explica Wally Serote, membro fundador do Medu. E assim, estendemos nosso alcance aos outros países que também estavam em luta e, depois de discutirmos talvez por um ano, sentimos que deveríamos formalizar a questão [de criar o Medu] e consolidá-lo” (Serote, 2023). Foi nesse contexto que nasceu o Medu Art Ensemble. O Medu foi dividido em seis unidades criativas: teatro, artes gráficas e design, publicações e pesquisa, cinema, música e fotografia. Dirigido por um corpo executivo eleito anualmente, os objetivos declarados do Medu, em suas próprias palavras, incluíam

  1. formar cidadãos de Botsuana e exilados nas habilidades mencionadas;
  2. promover um ambiente adequado para o trabalho cultural;
  3. criar relações mais próximas entre os trabalhadores culturais e a comunidade;
  4. estabelecer relações mais estreitas e cooperação prática entre os trabalhadores culturais da África Austral (Kellner, González, 2009, p. 77-78).

O Medu estabeleceu vários programas, especialmente oficinas práticas em várias áreas artísticas para artistas e estudantes locais e sul-africanos. Em Botsuana, também foi importante criar uma frente legítima para que os exilados trabalhassem, obtivessem acesso a recursos e construíssem pontes com as comunidades locais sem aprofundar as tensões com o governo anfitrião. Para Serote, o fato de haver diferentes unidades criativas foi importante para permitir que o Medu criasse um relacionamento recíproco que colocasse a organização “à disposição de nosso pessoal, de modo que houvesse retorno para nós e também para as comunidades” (Serote, 2023).

Rompendo com o isolamento imposto pelo regime do apartheid, os sul-africanos exilados expandiram seus horizontes tanto artística quanto ideologicamente. “Havia muitos ensinamentos ideológicos por trás de tudo isso”, lembra Langa. Estávamos aprendendo sobre o Retorno à Origem de Amílcar Cabral e a primazia da cultura na luta. Estávamos encontrando escritores como Pepetela e entendemos como os angolanos, sob a liderança do [presidente] Agostinho Neto, estavam trazendo um impulso cultural para sua própria luta. Havia também escritores como Mário de Andrade, do Brasil, e Abdias do Nascimento, que era um pan-africanista” (Langa, 2020). Além de construir boas relações, garantir recursos e expandir sua exposição ideológica e criativa, o Medu precisava ser “consolidar”, como diz Serote, em um projeto político concreto.

Medu members Lulu Emmig and Thami Mnyele (seated at the table in the front, from left to right), and others attend a Woman’s Day function at the Swedish Embassy in Gaborone, Botswana, 1981.Credit: Sergio-Albio Gonzalez via Freedom Park

Os membros de Medu Lulu Emmig e Thami Mnyele (sentados na mesa da esquerda para a direita), e outros assistentes a um ato do Dia da Mulher na Embaixada da Suécia, em Gaborone, Botsuana, 1981.
Créditos: Sergio-Albio Gonzalez via Freedom Park

Medu Art Ensemble, Now You Have Touched the Women, You Have Struck a Rock [Agora você tocou nas mulheres, você bateu em uma pedra], 1981.
Créditos: Medu Art Ensemble via Freedom Park

Acima

Para se consolidar

Sobashiy’abazali’ekhaya
Sophuma sangena kwamany’amazwe
Lapho kungazi khon’ubaba no mama
silandel’inkululeko

Deixaremos nossos pais em casa
Vamos e saímos de países estrangeiros
Para lugares que nossos pais e mães não conhecem
Seguindo a liberdade

Sobashiy’abazali [Deixaremos nossos pais], uma canção popular de liberdade nos campos de treinamento (Gilbert, 2007, p. 433).

Embora muitos dos principais dirigentes do Medu já fossem membros do CNA e vinculados ao seu trabalho clandestino, a organização em si não foi concebida como uma frente cultural oficial do CNA. Para os membros fundadores do Medu, como Serote, estar ancorado em um projeto político não significava estar preso às fronteiras coloniais de nação, raça ou idioma, mas estar a serviço das várias lutas de libertação nacional que estavam sendo travadas. “Quando você conceitua uma estrutura como fizemos no contexto da África Austral, isso significa que você vai se ancorar na Frelimo [Frente de Libertação de Moçambique], vai se formar na Swapo [Organização Popular do Sudoeste Africano] [da Namíbia], vai agir e se considerar parte do movimento de libertação angolano” (Serote, 2023). Para poder trabalhar além das divisões políticas e atrair uma ampla gama de artistas e militantes, o Medu se estabeleceu como uma organização “não alinhada”, como descreve Serote, aberta a pessoas de diferentes origens e trajetórias políticas. Para ele, um fator orientador foi o fato de “o trabalho deles estar ancorado em lutas de libertação” (Serote, 2023).

Produzir um trabalho cultural ancorado em uma luta de libertação não é uma tarefa fácil. Músicas foram compostas, telas foram pintadas e poemas foram escritos em condições extremamente difíceis. Barry Gilder, membro da unidade de música do Medu, que atualmente é embaixador da África do Sul na Síria e no Líbano e trabalhou em estreita colaboração com Serote, relembra a vida cotidiana deles como trabalhadores culturais e militantes políticos: “Entre as reuniões clandestinas do RPMC [Conselho Político-Militar Regional do MK em Botsuana], as reuniões altamente secretas com contatos em casa, a extensa leitura dos relatórios desses contatos, a redação de relatórios volumosos para Lusaka, a evasão da Agência Especial de Botsuana e a ameaça constante de ataques de morte do apartheid, Serote continuou com sua carreira de escritor” (Gilder, 2021, p. 174).

Com muitos dos mais de 60 membros conhecidos do Medu frequentemente trabalhando clandestinamente, é impossível captar a amplitude e a profundidade da produção cultural da organização durante seus seis anos de existência (Byrd, Mings, 2020, p. 136). Como acontece com qualquer luta de libertação nacional, não há um arquivo histórico único que torne os artefatos e as produções culturais do Medu acessíveis ao público. Uma de suas maiores retrospectivas, The Peoples Shall Govern! Medu Art Ensemble and the Anti-Apartheid Poster, foi organizada pelo Art Institute of Chicago, em 2019, apresentando 130 obras de arte e artefatos do Medu, incluindo 60 de seus 90 cartazes conhecidos. Ainda assim, essa história continua praticamente fora do alcance dos sul-africanos engajados em movimentos sociais e políticos atuais e das gerações mais jovens de trabalhadores culturais em todo o mundo. No entanto, o que foi documentado demonstra uma variedade impressionante de experimentos criativos e um conjunto de trabalhos de alta qualidade. A unidade de publicações e pesquisa do Medu trabalhou em conjunto com as outras unidades para produzir um boletim informativo repleto de poesias, contos, resenhas de exposições, críticas literárias, entrevistas e análises políticas dos membros e artistas da organização, além de pensadores de outros países. Os poemas revolucionários de Tố Hữu no Vietnã e os ensaios do autor queniano Ngũgĩ wa Thiong’o, por exemplo, foram intercalados com os escritos do Medu, cujos autores se viram no processo de articular suas próprias práticas e teorias sobre a arte da libertação nacional.

Entre as realizações mais impressionantes do Medu está o Simpósio de Cultura e Resistência e o Festival de Artes, realizado de 5 a 9 de julho de 1982. De acordo com diferentes relatos, algo em torno de centenas a milhares de pessoas participaram do festival, com trabalhadores culturais chegando à pequena cidade de Gaborone em carros e ônibus, enquanto outros pegavam carona ou vinham de avião. Durante esses cinco dias, tanto os sul-africanos que viviam no exílio quanto os “inziles”, aqueles que viviam sua própria existência “exilada” na África do Sul, ao lado de pessoas da Europa, dos Estados Unidos e de todo o sul da África, reuniram-se na Universidade de Botsuana para discutir o papel essencial da cultura na aceleração da luta pela libertação da África do Sul, que se tornava mais iminente a cada dia. Wally Serote, Thami Mnyele e Sergio-Albio González (um membro do Medu originário de Cuba) dirigiram os preparativos iniciais para a conferência, convidando uma série de organizações de Botsuana e da África do Sul para participar do processo de planejamento nos dois anos seguintes (Kellner, González, 2009, p. 158).

O Festival de Artes Cultura e Resistência, seguindo uma longa linhagem de conferências e festivais realizados na África, Ásia, América Latina e Europa, representou “a primeira oportunidade significativa em décadas para que os artistas sul-africanos, residentes ali ou exilados, se conectassem uns com os outros – direta e intensamente – por meio de artigos, discussões, performances e interação social”, lembra Barry Gilder (2021), que participou de várias conferências no exílio realizadas nas décadas de 1970 e 1980. Embora não tenham sido feitas declarações formais, a conferência reuniu pessoas de todas as divisões políticas, raciais, sociais e geográficas para construir uma África do Sul livre. Eles não apenas falaram sobre cultura, mas a criaram  juntos durante o festival, o que deu origem a novas formações de resistência. Entre as mais significativas estava a United Democratic Front [Frente Democrática Unida], formada um ano após o festival por muitos de seus principais participantes e que mobilizaria as massas para dar um golpe letal no sistema do apartheid.

Oitenta e sete trabalhadores culturais de diversas origens contribuíram com mais de 300 pinturas, esculturas e fotografias para a exposição Art Toward Social Development [Arte para o Desenvolvimento Social], que acompanhou o festival. Essas obras incorporaram o medo e o desespero, mas também o otimismo e a esperança (Kellner, González, 2009). “É esse elemento de otimismo e esperança”, disse Thami Mnyele em seu discurso na noite de abertura, “que nos reuniu esta noite; é esse espírito de luta indestrutível e duradouro que alimenta nossa busca pelo desenvolvimento social e pela justiça” (Mnyele, 1982).

O festival incluiu apresentações de vários gêneros artísticos, como a produção de Marabi pela companhia de teatro Junction Avenue, uma peça musical que recuperou a vibrante vida cultural da classe trabalhadora africana e apresentou jazz, festas dançantes e fabricação de cerveja nos shebeens (tabernas que existiam antes do início das remoções forçadas na década de 1930 como parte das políticas de segregação racial das cidades). Houve também várias apresentações musicais com Hugh Masekela no trompete, Barry Gilder no violão e Abdullah Ibrahim (conhecido na época como Dollar Brand) no piano, que encerrou sua apresentação com uma melodia melancólica de Tula Dubula, cantada com um lampejo de esperança:

Há um novo mundo a caminho,
A falsidade desaparecerá.
Eles virão marchando
para a cidade ao amanhecer;
cantando canções de liberdade,
e rindo na chuva.
Esse velho mundo não existirá mais,
as coisas não serão mais as mesmas (Ibrahim, 2023).

Embora seja difícil captar o espírito da época, os debates e experimentos culturais destacados no simpósio e no festival, e durante toda a existência do Medu, continuam sendo relevantes para os trabalhadores culturais envolvidos em lutas políticas atualmente. O que se segue é uma tentativa de destilar algumas das teorias que surgiram das práticas de Medu sobre a ideologia, a estratégia, a forma e o conteúdo da cultura revolucionária, bem como a antiga tensão entre arte e política. Juntos, eles nos apontam para uma teoria da arte para a liberação nacional.

A necessidade da arte.“A necessidade da arte para a libertação nacional” foi o título do discurso de abertura proferido pelo membro do Medu Dikobe wa Mogale Ben Martins, no Simpósio de Cultura e Resistência. Seu título faz referência ao livro clássico do historiador de arte austríaco Ernst Fischer, The Necessity of Art: A Marxist Approach [A necessidade da arte: uma abordagem marxista] (1959). Para Fischer, a principal tarefa da arte – especificamente da arte socialista – é dupla: “conduzir o público a uma apreciação adequada da arte, ou seja, despertar e estimular sua compreensão, e enfatizar a responsabilidade social do artista” (Fischer, 1959, p. 210). Em outras palavras, o artista deve ajudar a conscientizar as pessoas e tem o dever social de fazer isso. Da mesma forma, para Dikobe wa Mogale, em uma sociedade de opressão racial e de classe, os artistas não podem se esconder atrás da “neutralidade artística”. Se a cultura é de fato uma arma de luta, então, segundo ele, “a arte deve ensinar as pessoas, das formas mais vívidas e imaginativas possíveis, a assumir o controle de suas próprias experiências e observações e como vinculá-las à luta pela libertação e por uma sociedade justa, livre de raça, classe e exploração” (Martins, 1982).

Essa responsabilidade artística também foi enfatizada nos escritos de Thami Mnyele, um importante membro do Medu que ajudou a teorizar o trabalho da organização. Tendo crescido no município de Alexandra, no nordeste de Joanesburgo, Mnyele ficou irritado com a opressão e o subdesenvolvimento infligidos às comunidades negras e com a seletividade higienizadora da “arte do município” que as galerias consideravam aceitável para o público e os compradores brancos. Em uma conversa por escrito com Dikobe wa Mogale sobre “neutralidade artística”, Mnyele perguntou: “Diante de tanto sofrimento, supressão e repressão (sem-teto moradores em ocupações, sentenças de morte, guerra em Angola, fome), como explicamos nossas obras e atividades ou inatividades diárias? Que credibilidade merecemos das pessoas?” (Mnyele, 1981). Para Mnyele, a credibilidade é conquistada por meio da criação de arte que sirva ao povo e que “popularize claramente e dê dignidade aos pensamentos justos e às ações do povo”. Com nossos pincéis e tintas, precisaremos visualizar a beleza do país em que gostaríamos que nosso povo vivesse” (Mnyele, 2009). A arte é necessária para a construção de uma sociedade futura, socialista, ao mesmo tempo que fornece o abrigo espiritual para um povo que ainda está em processo de libertação.

Nenhum solista revolucionário. Mesmo com a responsabilidade social do artista revolucionário estabelecida, a relação entre o artista individual e o coletivo é muitas vezes tênue na prática. As tradições artísticas socialistas rejeitam as ideias de “arte pela arte” e de “liberdade artística” herdadas do Romantismo e do liberalismo do século XIX, que centralizam a criatividade, as aspirações e até mesmo o protesto do indivíduo em detrimento do coletivo. Mas em tempos revolucionários, que estavam se formando no sul da África, o conflito entre o indivíduo e o coletivo aumenta. Keorapetse William Kgositsile (ou “Bra Willie”), um importante membro do Medu que mais tarde se tornou o primeiro Poeta Nacional Laureado da África do Sul, refletiu sobre essa tensão em seu discurso principal no Simpósio de Cultura e Resistência. Ele começou com uma anedota sobre um colega escritor sul-africano que lhe perguntou como ele “ainda conseguia escrever romances e poemas”, sugerindo que seu engajamento político ativo estava em desacordo com sua produção criativa. Kgositsile respondeu: “com um pouco de ácido na língua, sempre me perguntei como um escritor sul-africano poderia estar fora do movimento e esperar escrever algo de valor ou significativo” (Kgostsile, 1984, p. 23). Afirmando o fato de que a produção artística surge de relações sociais concretas, Kgositsile continuou: “Não existe uma criatura como um solista revolucionário. Todos nós estamos envolvidos. O artista é um participante e um explorador imaginativo da vida. Fora da vida social não há cultura, não há arte; e essa é uma das principais diferenças entre o homem e o animal” (Kgostsile, 1984, p. 29-30). Como antídoto para a praga do individualismo, Mnyele enfatizou a importância da organização e das habilidades de organização como uma das “armas mais eficazes contra nossos problemas” (Mnyele, 2009, p. 26). Um artista que é socialmente responsável é, portanto, um artista que está organizado ao lado das pessoas, uma parte de seus movimentos, e não à parte deles.

Para ser entendido. Para que a arte cumpra sua função social, ela deve ser compreendida pelas pessoas. Um dos diagnósticos de Mnyele sobre os artistas sul-africanos contemporâneos foi que seu trabalho era “extremamente abstrato”, “perdido para o místico” e atormentado pela “distorção” (Mnyele, 2009, p. 25). Em outras palavras, suas obras de arte confundem e distraem em vez de esclarecer e permitir que seus espectadores entendam melhor o mundo ao seu redor. Como resultado, explicou Mnyele, “a obra perdeu aquela qualidade essencial de comunidade, o imediatismo da comunicação com as massas [a quem] o artista afirma se dirigir” (Mnyele, 2009, p. 25).

No início da década de 1980, as tendências que dominavam o mundo da arte ocidental – às quais os movimentos de liberação não estavam imunes – eram repletas de abstração, desde as esculturas minimalistas de aço inoxidável de Jeff Koons até a arte pop de Andy Warhol. Isso não foi por acaso. A abstração como estilo estético foi até mesmo utilizada pela Agência Central de Inteligência (CIA) para combater a tradição soviética do realismo socialista durante a Guerra Fria, uma forma de guerra cultural que continua até hoje. Na década de 1950, artistas como Jackson Pollock, por meio de suas pinturas abstratas “por gotejamento”, foram ativamente divulgados em âmbito internacional para representar o individualismo robusto e o anticomunismo da cultura dos Estados Unidos.

“O Ocidente era agressivamente contra o realismo socialista soviético e, portanto, a forma como se fazia arte no contexto de um movimento de libertação era realmente um problema”, lembra Judy Seidman, falando das “discussões intermináveis” sobre o realismo socialista que definiram esse período (Seidman, 2020).7 Era comum que os artistas da época criticassem “cartazes de pessoas com punhos cerrados [por serem] realistas socialistas no pior sentido possível da palavra”. Ela se lembra do que Mnyele costumava dizer aos opositores do estilo artístico de “punhos e lanças”: “Quando vou a reuniões e desenho pessoas com os punhos no ar, é porque é isso que estou vendo e é isso que estou desenhando”. Para Seidman e Mnyele, não é possível nem responsável excluir as representações das realidades das pessoas em sua arte. Em vez de aderir a um estilo rígido, os membros do Medu tinham como objetivo fazer arte que refletisse as realidades concretas das pessoas, com todos os seus horrores, dores e injustiças, ao mesmo tempo que injetavam a confiança de que essas realidades poderiam ser mudadas. Para realizar ambas as tarefas, uma obra de arte deve ser capaz de ser compreendida pelas pessoas para as quais foi criada.

Rumo à arte socialista.Como uma organização não alinhada, não racial 8 e ideologicamente diversa, o Medu não tinha uma prática ou teoria singular em relação à arte. Ao analisar alguns de seus escritos e debates, no entanto, pode-se dizer que o grupo estava se movendo em direção a uma teoria e prática da arte socialista e à restauração da arte em sua função social, que o capitalismo e o colonialismo haviam destruído. Os membros do Medu inspiraram-se em diferentes tradições estéticas e de libertação para escapar das garras das galerias de arte da classe dominante, que, de acordo com Mnyele, eram “não apenas os postos avançados e santuários monopolistas da arte africana, mas também determinavam a forma e o conteúdo que a arte deveria assumir” (Mnyele, 2009, p. 25). Em vez disso, eles procuraram muralistas socialistas como David Alfaro Siqueiros e Frida Kahlo no México e teóricos culturais marxistas como Bertolt Brecht e Ernst Fischer. Por exemplo, a formulação de Fischer da arte socialista como aquela que “antecipa o futuro” com o passado “tecido em seu tecido” é ecoada na própria compreensão histórica e materialista de Mnyele sobre o desenvolvimento da arte e da estética (Fischer, 1959).

Os membros do Medu se inspiraram em artistas comunistas de todo o mundo, desde as canções do músico chileno Victor Jara até a poesia do escritor vietnamita Tố Hữu. Eles aprenderam com o pensamento cultural das lutas de libertação nacional da tradição marxista, como as de Amílcar Cabral, Frantz Fanon e Mao Zedong, cujas teorias e práticas foram adaptadas às suas próprias realidades. Serote lembra, por exemplo, que “houve muita influência, especialmente de Mao. Lemos muito sobre isso e também discutimos e sempre nos perguntamos: ‘como podemos garantir que os dois interajam e se influenciem mutuamente, e o que recebemos da China e o que queremos fazer no sul da África e na África do Sul?’” (Serrote, 2023).

O caminho em direção à arte socialista pode ser entendido mais como uma perspectiva, um método e uma atitude do que como um estilo monolítico e, de muitas maneiras, essa é a orientação que Medu defendeu e tentou articular à medida que os processos revolucionários se desenrolavam. Devido ao fim trágico e prematuro do Medu, é impossível, é claro, prever onde essas inovações práticas e teóricas poderiam tê-los levado.

Actors rehearse Marumo by playwright Mandla Langa at the Gaborone Town Hall in Gaborone, Botswana, 1979.Credit: Sergio-Albio Gonzalez via Freedom Park

Atores ensaiam Marumo, do dramaturgo Mandla Langa, na Prefeitura de Gaborone, Botsuana, 1979.
Créditos: Sergio-Albio González via Freedom Park

December 16 – Heroes Day, 1983.Credit: Medu Art Ensemble via Freedom Park

Medu Art Ensemble, December 16 – Heroes Day [16 de dezembro – Dia dos Heróis], 1983.
Créditos: Medu Art Ensemble via Freedom Park

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Meu sangue nutrirá a árvore que produzirá os frutos da liberdade

Você não o ouviu hoje?
Ainda agora
Cante seu poema de amor
Escreva um epitáfio de amor
Com VIDA
‘Meu sangue nutrirá a árvore
Que produzirá os frutos da liberdade’…

Sim, para ele também com VIDA
Devemos alcançar os ricos estados da liberdade…
Marchando
Ao ritmo ininterrupto
De lanças dançantes que surgem

– Lindiwe Mabuza, “Epitaph of Love” [Epitáfio do amor] (em memória de Solomon Mahlangu, executado em 1979). (Mabuza, 1984, p. 27)

Na noite de 13 de junho de 1985, um caminhão transportando 63 homens da Força de Defesa da África do Sul e um arsenal de rifles, pistolas 9 mm, bombas de efeito moral, máscaras de gás e muito mais cruzou a fronteira com Botsuana. Cerca de 60 outros tanques e veículos blindados estavam de prontidão.

Era 1h15 da manhã quando uma equipe de oito homens chegou à casa de Thami Mnyele. Ele ainda estava acordado. Em poucos minutos, toda a sua casa, suas obras de arte e o próprio Mnyele foram atingidos por balas. Ele morreu tentando escalar a cerca ao lado de um espinheiro enquanto suas canetas estavam destampadas, com a tinta recém-derramada. Talvez seu último ato na vida tenha sido pintar esses mesmos espinhos, o que ele fazia com frequência para mostrar não apenas a beleza, mas também a dor e a violência deste mundo (Wylie, 2008, p. 201-202).

Michael Frank Hamlyn. Cecil George Phahle. Lindiwe Phahle. Joseph Malaza. Themba Duke Machobane. Dick Mtsweni. Basil Zondi. Ahmed Geer. Gladys Kesupile. Eugenia Kolobewere. Peter Masoke, de seis anos de idade (Kellner, González, 2009). Essas são as doze pessoas – duas delas membros do Medu – que foram identificadas como vítimas das incursões realizadas naquela noite pelas Forças Especiais da Força de Defesa Sul-Africana no território soberano de Botsuana, enquanto outras escaparam por pouco, pois souberam de um possível ataque. Alguns membros e militantes do Medu que sobreviveram permaneceram em Botsuana após os assassinatos, enquanto outros foram enviados a outros lugares para continuar sua militância política e artística. No entanto, essa operação marcou o fim do Medu Art Ensemble. Em 2002, 17 anos após o ataque, a Comissão da Verdade e Reconciliação argumentou que a ação transfronteiriça não estava dentro de sua área de competência, e os únicos homens que foram julgados foram aqueles que coletaram informações sobre os alvos. Eles receberam anistia. Hoje, ainda mais distante dos tempos e das condições que produziram o Medu, o que pode e deve ser recuperado dessa história para aqueles que se dedicam às lutas e ao trabalho cultural?

Mandla Langa reflete sobre a clareza ideológica do Medu durante a luta pela libertação da África do Sul e sobre como o conceito de nação e a análise marxista de classe ajudaram a estruturar sua compreensão de quem eram os oprimidos na África do Sul. “Infelizmente, hoje, tudo ficou confuso”. Ele compara a jovem democracia da África do Sul a “um adolescente mais velho” com “impurezas hormonais” que requerem “muito desaprendizado” para entrar no caminho certo (Langa, 2020). Na mesma linha, Barry Gilder aponta para a importância de preservar a história no processo de transição para o poder estatal: “Tínhamos um medo, uma sensibilidade em relação à nossa história, nossa história cultural, nossas músicas e assim por diante. Medo de ofender aqueles com quem nos reconciliamos” (Gilder, 2023). Para ele, o processo de reconciliação também foi um processo de esquecimento de lições críticas e duramente aprendidas que vieram da luta revolucionária, inclusive no âmbito da cultura. Da mesma forma, Serote lamenta a perda de intercâmbios culturais internacionalistas desde o período da libertação: “Não me lembro quando foi a última vez que li um romance da China (…) Temos muita literatura desse tipo em nossas livrarias dos Estados Unidos, da Europa e assim por diante, mas não do Vietnã, nem da China, nem de Cuba. Há algo errado” (Langa, 2020).

Não há dúvida de que a transição da África do Sul para a democracia não proporcionou à maioria de seu povo a libertação pela qual tantos lutaram e morreram, que seu processo de libertação nacional está incompleto. A Carta da Liberdade está longe de ser cumprida, e a África do Sul continua sendo uma sociedade extremamente dividida e desigual, na qual os 10% mais ricos da população, em sua maioria brancos, detêm 85% da riqueza agregada do país (World Inequality Database, 2020). O processo de libertação nacional não termina com a transferência formal do poder das mãos coloniais nem com a queda de um regime de apartheid. A sociedade de classes não desaparece da noite para o dia em um projeto socialista, e o imperialismo não fica de braços cruzados enquanto as nações e os povos tentam traçar um caminho soberano. Em vez disso, a libertação continua a ser um processo e uma luta que deve ser moldada continuamente pelas pessoas e com elas.

Os membros de Medu, Tim Williams, Wally Serote e Sergio-Albio González imprimem o cartaz Unity Is Power [Unidade é poder] em Gaborone, Botsuana, 1979.
Créditos: Teresa Devant via Freedom Park

Organisers prepare for the first session of the Culture and Resistance Symposium and Festival of the Arts, Gaborone, Botswana, 1982.Credit: Anna Erlandsson via Freedom Park

Medu Art Ensemble, Unity Is Power [A unidade é poder], 1979.
Créditos: Medu Art via Freedom Park

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Abrindo o futuro

Um cartaz. Dezenas de pessoas se reúnem em uma sala de conferências no Diakonia Council of Churches em Durban, África do Sul. Estamos em outubro de 2020, no auge da pandemia global, e o Abahlali baseMjondolo (AbM) está organizando este e outros eventos para comemorar seu décimo quinto aniversário. Desde sua fundação, em 2005, o AbM criou um movimento democrático auto-organizado formado pelos pobres e despossuídos na África do Sul, ocupando terras, garantindo moradia, produzindo alimentos e formando politicamente seus 100 mil membros. Um banner grande e centralizado diz: “Quinze anos de nossa luta revolucionária por terra, moradia e dignidade”. Abaixo dele, há cartazes de artistas e militantes de todo o mundo, de Cuba à Índia, da Venezuela ao Líbano, do Brasil à Indonésia. Essa obra de arte faz parte da série de quatro partes da Exposição de Cartazes Anti-Imperialistas, organizada em conjunto pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e a Semana Internacional de Luta Anti-Imperialista.9 Para a comemoração, os membros da AbM selecionaram, entre os mais de 200 pôsteres que testemunham as lutas dos povos em âmbito internacional, os que mais se assemelham às suas próprias realidades locais. Entre eles está um retrato desenhado à mão em homenagem a Thuli Ndlovu, presidente do AbM em KwaNdengezi e um dos 25 dirigentes assassinados desde a fundação do movimento (Kgositsile, 1984). Acima, há um cartaz que Judy Seidman, do Medu, produziu para a Exposição de Cartazes Anti-Imperialistas que viajou pelo mundo e pela Internet antes de chegar a estas paredes em Durban. O cartaz diz: “O capitalismo mata, mas nós nos levantaremos”.

No discurso de Kgositsile no Simpósio de Cultura e Resistência de 1982, ele disse: “Nossos artistas têm, ao longo dos anos, lutado junto com o povo, sensibilizados e expressando os sentimentos, sofrimentos, esperanças, fracassos e conquistas em nossa luta pela libertação nacional” (Idem, p. 29). Escrever sobre a história de Medu e as lutas de libertação da África Austral hoje não é um esforço nostálgico. Essa tentativa visa, como escreveu Fanon, “usar o passado com a intenção de abrir o futuro, como um convite à ação e uma base para a esperança” (Fanon, 1963, p. 232). A arte, portanto, tem a capacidade de capturar nossas vitórias e derrotas coletivas, incluindo a história do Medu Art Ensemble, e transformá-las em uma força mobilizadora para as lutas de hoje e as que ainda estão por vir. De fato, o artista tem a responsabilidade de fazer isso.


Organisers prepare for the first session of the Culture and Resistance Symposium and Festival of the Arts, Gaborone, Botswana, 1982.Credit: Anna Erlandsson via Freedom Park

Militantes se preparam para a primeira sessão do Simpósio e Festival de Artes Cultura e Resistência, Gaborone, Botsuana, 1982.
Créditos: Anna Erlandsson via Freedom Park

Posters displayed on the walls at Abahlali baseMjondolo’s fifteenth anniversary celebration at the Diakonia Conference Centre in Durban, South Africa, 2020. Top: Judy Seidman, Capitalism Kills, but We Shall Rise, 2020. Bottom: Pan Africanism Today, Thuli Ndlovu, 29 September – Day of Remembrance, 2020. Credit: Abahlali baseMjondolo

Cartazes expostos nas paredes da celebração do décimo quinto aniversário do Abahlali baseMjondolo no Centro de Conferências Diakonia de Durban, África do Sul, 2020. 
Arriba: Judy Seidman, O capitalismo mata, mas nos levantaremos, 2020.
Abaixo: Pan-Africanism Today, Thuli Ndlovu, 29 de setembro – Dia da Memória, 2020.
Créditos: Abahlali baseMjondolo

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Notas

1 Para saber mais sobre a história dos cartazes cubanos, ver: Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, A Arte da revolução será internacionalista, dossiê n. 15, abr. 2019. Disponível em: https://dev.thetricontinental.org/the-art-of-the-revolution-will-be-internationalist/.

2 Para saber mais sobre Fanon, ver Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Frantz Fanon: o brilho do metal, dossiê n. 26 mar. 2020. Disponível em: https://dev.thetricontinental.org/pt-pt/brasil/frantz-fanon-o-brilho-do-metal/.

3 Lei aprovada em 1950 que favorecia a segregação racial nos bairros, proibindo a convivência entre as raças na mesma região.

4 Para saber mais sobre os primórdios do Partido Comunista da África do Sul e o movimento de resistência após sua proibição, ver Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Josie Mpama, Estudos sobre Feminismos n. 5, mar. 2023. Disponível em: https://dev.thetricontinental.org/pt-pt/estudos-feminismos-5-josie-mpama/.

5 Para saber mais sobre a história política de meados do século e o Movimento de Consciência Negra, ver Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Programas da Comunidade Negra: a manifestação prática da filosofia da Consciência Negra, dossiê n. 44, set. 2021. Disponível em: https://dev.thetricontinental.org/pt-pt/dossie-programa-da-comunidade-negra/.

6 Um poeta Laureado Nacional é uma nomeação oficial de um governo que acarreta responsabilidades, que podem incluir compor e recitar poesia em ocasiões importantes, orientar gerações mais jovens de poetas e promover a poesia e as artes.

7 Judy Seidman (trabalhadora cultural e artista visual), entrevista por Tings Chak, Joanesburgo, África do Sul, 8 de junho de 2020.

8 O não racialismo é uma ideologia e tradição política proeminente na África do Sul que nasceu da oposição ao sistema racializado do apartheid. O termo está consagrado como um valor fundamental no capítulo um da Constituição da África do Sul, embora seu significado preciso seja contestado por diferentes forças políticas. O Partido Comunista da África do Sul era uma das principais organizações de políticas não raciais, enquanto, por exemplo, o CNA reservou sua filiação exclusivamente para africanos até 1969. Consultar Imraan Buccus, “The Dangerous Collapse of Non-Racialism”, New Frame, 30 de julho de 2021.

9 Ver Anti-Imperialist Poster Exhibitions, International Week of Anti-Imperialist Action e Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, julho a dezembro de 2020, https://antiimperialistweek.org/en/posters/.

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Referências bibliográficas

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